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Por mais sofisticados que sejamos ou queiramos ser, tropeçamos, a cada momento, em clichés, frases feitas, realidades bipartidas, concepções simplistas do bem e do mal.
Para não complicar, para despachar, para não pensar muito no assunto ou perder tempo, condensamos, em pequenos pacotes de respostas meias feitas e prontas a servir, as nossas opiniões.
Habituamo-nos a ter opinião sobre quase tudo o que é, ou vai sendo, de actualidade: o aborto, o adultério, a eutanásia, a pena de morte, as uniões de facto, o casamento homossexual, o assédio sexual, os maus tratos infantis, o planeamento familiar, os males do stress, a organização familiar, as novas religiões, os direitos das mulheres, a regionalização, a política monetária.
Decidimos linearmente, e com base numa ou duas afirmações ou atitudes, às vezes descontextualizadas, quem são os culpados e os inocentes, os sérios e os desonestos, os credíveis e os inconsistentes. Alinhamos desportivamente em guerras de alecrim e manjerona sobre política, futebol, relações homens-mulheres, ecologia e ambiente ou relações norte-sul.
Tomamos partido, às vezes encarniçadamente mesmo que sem grande convicção ou sustentação, por pessoas, causas ou grupos de quem gostamos ou com quem nos identificamos.
Tudo, ou quase tudo, muito levemente, porque o tempo corre, é preciso estar "up-to-date" e a hiper complexidade que sabemos existir ou é inarrável ou bloqueante ou incompreensível.
A níveis mais domésticos, mais comezinhos e próximos, acabamos a perseguir a mesma fórmula redutora.
Assumimos um papel. De todos os que estão disponíveis pela história e pelas circunstâncias, escolhemos aquele que julgamos que nos vai melhor: a executiva atarefada, o intelectual distraído, a mãe de família, o "enfant terrible", a funcionária hiper-organizada, o defensor indómito da moral e dos bons costumes, a vítima sacrificial, o arauto do futuro.
Arranjamos sempre maneira de debitarmos uma imagem que, com mais ou menos perfeição, tentamos vender e fazer durar.
Mas, seja qual for o papel, e seja qual for o nível do desempenho, não escapamos à dicotomia ancestral de umas vezes estarmos de vítimas e outras de carrascos. Quando perdemos o emprego, quando somos preteridos numa promoção ou arquivados sine die numa prateleira, quando somos trocados ou abandonados numa relação amorosa, de amizade ou social, quando não nos ligam, não nos mimam, quando não vemos os nossos desejos tornarem-se em realidades nem as nossas expectativas cumprirem-se, vestimos a pele das vítimas.
Sentimo-nos e passamos a ser, pelo menos durante algum tempo, uma espécie de coitados, injustiçados pelos outros, pela vida ou pelos deuses. Passa a haver um mal qualquer, que nos persegue ou nos quer mal, que nos desvaloriza, humilha, não nos reconhece ou não é grato.
Quando nos toca a nós despedir alguém, deixar a família, trocar de amigos, decidir sobre matérias que afectam negativamente os outros, ficamos de carrascos. Claro que, nestes casos, arranja-se racionalizações e justificações que nos permitem não ser o mau da fita e manter a imagem de boa pessoa ou, pelo menos, de alguém justo.
Sabe-se, lá no fundo, que por mais legítimas que sejam as razões invocadas, provocar a alguém mágoa ou desespero é, no mínimo, feio. Tirando alguns, felizmente poucos, que se comprazem e se alimentam do poder que têm de transformar vidas e controlar pessoas, a maioria de nós desgosta-se consigo próprio por não poder ser, ou pelo menos parecer, tão bom quanto isso.
Além do desconforto de não parecer bem e de desagradar, há uma forma de medo, arreigada ainda que difusa, que sopra baixinho ao ouvido e vai relembrando superstições antigas do género: "Quem com ferros mata…". É melhor nem ouvi-la.
Donde, feitas as contas, chegamos sempre a um lugar conveniente. Somos todos boas pessoas, às vezes vítimas dos outros, às vezes vítimas das circunstâncias.
Os carrascos existem, talvez, mas nunca somos nós. Podemos dormir tranquilos ou ter insónias, que é um mal da civilização, e continuar a perspectivar o mundo e o que nos rodeia com alguma facilidade.
Afinal, para quê complicar?
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